terça-feira, 15 de setembro de 2009

Fuga.

Daí ela tirou a roupa, vestiu a camisola velha, ligou a televisão. Deprimida não era bem o adjetivo que queria, mas o único que conseguia encaixar para si naquela noite. Nesse dia, não desligou o telefone – quem sabe uma chamada inesperada? Nesse dia, não desligou o computador – quem sabe um e-mail chegava de longe? Nesse dia, não desligou.

Já ia sol alto quando conseguiu dormir. Cochilar, porque o despertador ia tocar dali a pouco mais de meia hora. E como não conseguiu dormir de verdade, teve a sensação de que o dia ainda não tinha acabado. Seguiu a terça-feira inerte, como se a segunda ainda não tivesse tido fim. Não era o fim das horas, da volta do relógio do braço, ou do tic-tic dos ponteiros na parede da cozinha. Ela precisava começar a semana. Ou terminar a segunda-feira.

Chegou do trabalho, tirou a roupa, tomou um banho, vestiu a camiseta velha. Agora sim, se sentia em casa. A camisola velha ficara embaixo do travesseiro, a quilômetros dali. Assim como os livros da faculdade, o material de trabalho, o presente da amiga que esqueceu de entregar, as contas, as multas, as fotografias e até o incansável companheiro tecnológico de rotina: o notebook, recém-chegado do segundo conserto do mês.

Passou o braço de um lado para o outro da cama, como se fosse um limpador de pára-brisa. Sorriu. Bagunçou o lençol como pôde até quase se perder em tanto pano. Abraçou os travesseiros com as pernas, com os braços, com o pescoço. E finalmente conseguiu dormir.

É que fantasmas pareciam não existir em quartos de pousada na cidade vizinha com três trancas na porta.

domingo, 9 de agosto de 2009

Inominável

*Publicado em 29/05/06
(Relevem o pieguismo de alguns textos. Sou movida à paixão e só consigo produzir textos pessoais em fases hardcore. Síndrome?? rs.)

É porque lateja.
Eu trouxe em meus braços as dores duras do amor. Cansei dos abraços, zombei, apertei o passo para tentar tirar da minha sombra a zoeira insandecida que me seguia. Que se seguia a si mesma, sempre.
Projeto na parede da memória o beijo. O instinto de lamber os ouvidos com palavras arrebatadoras. Avassaladoras como o sexo. Como a língua em todas as partes do corpo. Como querer teu sexo no meu. Ainda mais, desejar, ardorosamente, o teu amor amando o meu.
Choro lágrimas cinzas, sem brilho. Enxugo as gotas com as mesmas mãos que protegem minha alma. Que acariciam a tenebrosa aura dessa paixão infinda e tortuosa. Bato a cabeça contra a sua, na tentativa de fundir teus pensamentos com o meu, da maneira mais brusca. Visceral.
Sigo na solidão crua de uma vida sem temores. Mas sigo amando o amor. É porque aprendi a ser otimista.

Ampulheta.

Amigos, tento, aos poucos, voltar ao mundo dos escrivinhadores. A idéia é fazer desse blog uma prateleira de novas impressões jornalísticas. Mas muito terá de textos pessoais também.
Enquanto preparo novidades e tento entrar no pique de atualizar todos os dias, aproveito para cascavilhar os antigos (e já mofados) posts dos finados blogs.

=)


Apaixonada vida
*Publicado no Segredos de Liquidificador em 05/01/2006.

E ela foi caminhando assim, sem saber aonde ir. Dobrou esquinas, subiu calçadas, desceu batentes. Desviando das chuvas e dos hidrantes, lançou sortes e laçou desafios.
As ruas por onde andou eram de barro, de asfalto. Tropeçou por vezes num paralelepído solto ao atravessar becos e travessas.Cantou quando o sol esquentava seus cabelos para distrair a solidão. Encontrou conhecidos, reviu amigos, cultivou contatos.Beijou algumas bocas nos intervalos de tudo, sentada nos bancos das praças que conheceu. Jogou-se em alguns corpos nos cantos de parede, para ter algum prazer.
Parou em frente a vitrines, assistiu televisão de cachorro, e quando suas pernas dóiam demais tomou ônibus, pegou carona, foi de táxi... Nos carrinhos, nos cruzamentos, em frente às escolas, comeu churros, chupou picolés. Ganhou alguns algodões-doces, engasgou com pipoca, melou-se de maionese na correria dos cachorros-quentes do meio-dia.
Se perguntavam aonde ia, ela respondia que ao final. Se indagavam onde ficava, ela dizia que no mesmo lugar onde a estrada cansasse de continuar. E completava, gritando de longe, meio de costas, sorrindo:
"Só vou saber quando chegar lá. Enquanto isso, caminho sem pressa e sem destino, colhendo frutos e plantando sementes, pois que é essa minha vida. Sem mapas e sem guias, só o Sol e as estrelas."

quinta-feira, 16 de julho de 2009

O trigésimo dia

Era uma tela de uns 50cmx50cm. Exibia clipes antigos, meados da década de noventa do mais recente imortal astro pop americano. Em projeção, Michel Jackson requebrava ferozmente. Depois seguia zumbis, e dava rosas à garotas negras com extravagantes penteados de cachos reluzentes.
Umas 200 cadeiras lotavam o auditório. Mas nem mesmo 40 pessoas sentavam nelas. No caderno de ponto, colocado numa mesa à esquerda da sala, umas 38 assinaturas. Caderno velho, capa preta, desses de atas. Riscado à caneta BIC azul, esperava que o deixassem descansar, tão logo o 50ª punho deitasse sobre sua página amassada.
Entrava-se pelos fundos, por duas portas que mais pareciam box de banheiro. Uma espécie de vidro jateado, branco, fosco. Maçaneta de puxar para baixo, comprida na horizontal. Manhã de quinta-feira. O motivo do encontro era uma assembléia geral extraordinária. Servidores do INSS.
Quando uma categoria entra em greve, não pode bater os trinta dias sem negociação. Começa-se a se cortar o ponto, reduzir salários, demissões são ameaçadas. É preciso ter um certo aval do chefe. No caso, o Governo Federal.
Daí que na reunião de Brasília que eles tiveram semana passada, conseguiram a suspensão do ponto eletrônico. E a formação de um grupo de trabalho, com gente do governo e gente da categoria. É preciso que no dia 30 de setembro estejam no papel, documentado e assinado, soluções ou contra-propostas para os desejos maiores: manter o trabalho em 30 horas por semana, seis por dia; fazer da gratificação ganha por produtividade salário real - ganhar FGTS, benefícios com ela também.
E, tá bom que na última greve de trabalho o único candidato à greve de fome não teve muito sucesso. Deve ser por isso que ele ganhou mais seis companheiros. Serão sete estômagos tão vazios quanto as carteiras de seus donos a partir de segunda-feira. "De algum jeito, precisamos sensibilizar o governo e conseguir o que pedimos. Essa é uma forma justa e demonstra força". Francismar e seus colegas acreditam nisso.
Os outros companheiros da categoria, atrasados pela chuva, chegam mais de uma hora e meia depois do combinado. MJ já tinha sido calado - no vídeo, claro -, e uns aventureiros cantavam odes à, digamos, simpatia forçada com Lula e alguns ministros.
Caderninho preenchido 50 vezes, 50 nomes, 50 bolsos esperançosos, a assembléia começou. E Roberto, que apesar de ter a mulher para pagar as contas e a faculdade da menina porque o menino estuda em universidade pública, suspira por seus 63% perdidos de salário. Quase metado do orçamento da casa. Isso, porque ele tem a mulher para pagar as contas. Dos outros 49, não sei.